quinta-feira, 5 de julho de 2012

a Dona

Tinha algo além da indecisão que a atordoava, e não era nada banal. Não era algo como recado indesejado dado, como que sem o aviso prévio da consciência de quem lhe entregou. Seria bom se soubesse o que era. Parecia-se com a angústia, mas não era tão sufocante.
Levantou de sua cadeira, provocando o assombro de todos, segurando em uma mão a .380 e em outro, a flanela. Sabia que era um cuidado quase desnecessário, se não se levar em conta, claro, a estética do momento em que fosse necessário usá-la. Pensava nisso inclusive como requinte de crueldade, não que se orgulhasse disso.
– Não vou ficar parada esperando pelo que não virá - disse a uma voz que beirava a sutileza do barulho de seu caminhar, mas audível o suficiente a todos da sala.
Se lançou porta afora, para sair a rua.
Os outros ficaram se olhando com o rosto encharcado de perplexidade, como que se por alguns segundos estivessem tentando sintonizar um a mente do outro para entendê-la, e decidir como agir.
Os dois homens de capa saíram atrás dela, sem nenhuma vontade de impedi-la ou dissuadi-la, menos ainda por preucupação com o fato de ela ir sozinha, sabiam que quem estaria lá não causaria problemas a ela. Estavam há dois dias naquela incerteza e sem ação.
– Malditos, realmente souberam nos deixar confusos – e percebiam que nisso, os seus oponentes neste Jogo eram mestres.
– Já que estamos entre amigos agora, que tal contar realmente o porque do anel estar contigo.
– Já lhe falei, não posso, não sou desleal, e juro que não foi da Dona que peguei.
– Achei que nossa lealdade fosse maior que qualquer outra. Não sou do tipo sentimental, mas entreguei a você meu caro, não só a minha amizade, mas meu coração.
– Cala a boca! Entregou sim seu corpo, para sanar suas necessidades, admita. Agora quer fazer joguinho emocional.
– Mesmo que fosse, o fato de estar contigo pode ser muito importante para a nossa estratégia, a não ser que você não esteja jogando só do nosso lado.
– Como ousa, dizer que me ama e suspeitar assim de mim.
– Esse seu olhar nunca me enganou, você é o traidor, você entrega os nossos passos. Como sou idiota – berrou sacando o 32 que estava no cano de sua bota.
Caiu antes de conseguir fazer a mira, seu movimento fora previsto, seu companheiro de crime e de cama o olhava, aterrorizado consigo mesmo.
Dentro daquele olhar de terror restou a dúvida. Por que seu amado alvo não sacou a pistola da cintura? Se o tivesse feito, não teria tempo de sacar a sua, e estaria morto. Ele era profissional e essa falha não poderia ter sido fruto do acaso, ele fez de propósito, como uma última prova de amor.
Os outros dois agora esperavam dentro do carro conversando:
– Já pensou como as pessoas agem de maneira mecânica?
– Trabalhar, estudar, etc?
– Não só isso. Se interessar pelas coisas, parece que cada paixão, cada nova invenção é um dentinho de uma engrenagem, e não importam as escolhas.
– Tipo... destino?
– Odeio essa sua mania de responder tudo com uma pergunta.
– Como agora?
– Não é destino, é tudo aleatório mesmo. Você perde um ônibus e ao pegar o próximo encontra alguém, que é totalmente aleatório, e tem uma conversa que muda sua vida. Mas não pensa que no ônibus perdido você poderia ter encontrado uma pessoa que pudesse te apaixonar, proporcionar filhos, lar com cachorros e tudo, essas coisas. Entende?
– Não.
Os tiros.
– Vamos lá, só não entendi essa de não matar antes de dez minutos.
– Deve ser para se ter certeza da distância.
Ela entrou no carro, e enquanto andavam começou a contar como fora, dos capangas baratos, da Dona amarrada, conseguia disfarçar exatamente suas emoções, com frieza andou naquela carona, contou quase uns dez minutos, para dar certeza de uma distância mínima. Os dois imaginavam que ela jamais sacaria o plano, mas não, e perderam bons minutos, quando aconteceu nem dera tempo de fazer como os agentes. Não daria tempo para nada mesmo, o carro explodiu.
Enquanto isso, ele continuava na sala, com a arma na mão. Agora parou para pensar que boas decisões deveriam ser tomadas quando regadas a whisky, preferencialmente ao som de Lynyrd, o whisky tem essa peculiaridade fantástica, de proporcionar momentos bons para tomar decisões. Depois de ter ouvido todo o plano, percebeu o quanto era miserável, idiota, inútil, e manipulável. Não lhe restava alternativa, era impensável, como se um instinto natural o levasse a atirar.
O último, por sua vez, tomou mais um gole de whisky, pôs edge of forever para tocar, começou a falar, falou tudo que era necessário, delicadamente, sem restar nenhum pingo de remorso. Afinal, o plano dera certo. O anel não era da Dona, claro que não, e esse foi seu trunfo.
O casamento com a Dona pelo menos lhe rendera a herança, além do anel.
E os outros dois até ficavam bem, além de bem hilários. – engraçados pra caralho, na verdade, ex agentes hehehe – falou segurando com os dentes o cachimbo.
- E pensar que os dois achavam que iriam ganhar o Jogo, na verdade ganharam, só não receberão o prêmio.
Só uma coisa lhe atordoava, talvez a menina que julgou ser boa o suficiente para fazer o trabalho sujo, fosse boa demais. Ao menos ele sabia o que lhe atordoaria, afinal isso também fora um de seus trunfos.
E de esforço, só o último passo e sabia que lábia para isso tinha, convencer um homem transtornado a se matar. Terminou o serviço e parou para pensar que boas decisões devem ser tomadas quando regadas a whisky....

R.F.