Ele levantou cedo,
vestiu a camisa e a calça demoradamente. Caminhou até o banheiro, fazendo o
mínimo possível de barulho. Ao passar pela cozinha, ligou a cafeteira e, após
se lavar, preparou a costumeira torrada. Não a fez para ele, afinal de contas,
o café da manhã é o mínimo de romantismo que ainda deve restar.
Voltou ao quarto,
calçou seu all star e beijou-a com um tom de despedida. Sabia que ela estava
dormindo, mas dada a inconsequência da mente dela não sabia quando voltaria a
vê-la. Atravessou o apartamento enquanto vestia seu sobretudo, abriu a porta e desceu o lance de
escadas que o lançaria à rua.
Era jovem, mas se
sentia alheio à juventude. Pensava consigo se era ele que tinha um fascínio
pela música e pelos hábitos de outra época, ou simplesmente era essa geração
que estava perdida. Talvez se tivesse vivido nos anos 60 ou 70 não pensaria
assim, provavelmente iria detestar os Beatles e procuraria algo que ninguém
gostasse. Poderia se tornasse um punk, afinal, a nossa vontade sempre busca o
que não temos e viver como nossos pais, como diria o poeta, seja uma forma de
buscar abrigo.
Acendeu um cigarro,
maldito cigarro. Alcançou o ponto e para sua sorte já conseguia avistar o
ônibus que vinha a algumas quadras. Por incrível que pareça, deixou-o passar
pelo simples fato de poder terminar seu cigarro.
Essas pequenas escolhas
mudam todo o desenrolar de um dia, e se pararmos para pensar na vida, ela é
como uma roleta russa. Ele poderia ter tomado aquele ônibus e nele ter
encontrado alguém especial, com quem pudesse ter uma ótima conversa, adicionar
no facebook, namorar, criar filhos, enfim, tudo o que normalmente as pessoas um
dia fazem com alguém que consideram especial.
Procurar pessoas
especiais é uma perda de tempo. E para ele a vida era algo totalmente
aleatório, sem nada predestinado. Pensar nisso lhe causava depressão, ainda
mais ao lembrar do que ela dizia. “Meu bem, por favor, te desprenda de tudo que
fazes pensando no que os outros vão pensar. Pense só, sua vida inteira
desperdiçada em algo que no fundo de nada valeu. Se fôssemos bons atores, isso
ainda poderia parecer belo.”
Mas o problema não é a
beleza.
Afinal, ao ator, rei
dos artistas, ninguém precisa mais prestar homenagens. “O palhaço sempre
conduzirá o espetáculo”. Claro, pouco valorizados, alguns fazendo bicos em
outras áreas, talvez interpretando políticos, pegando emprestado da arte alguns
discursos inflamados e olhares de persuasão.
Mas se concentrara na
frase, claro, era isso que ouvira na noite anterior e agora era o momento,
percebeu. Começou a se debater como quando se sente muito frio, mas agora era
de calor.
Esquentou o sangue,
como se o cérebro, na hora em que ele concluiu o pensamento, mandasse um aviso
para o corpo se preparar. Vibraram os nervos, como se sua mente desejasse se
vingar do fato de não ter ao menos pensado nessa solução. Traída por si mesma,
ingênua e exposta, maldita mente e malditos bons atores. Os músculos enrijeceram.
Era a hora, na verdade, já havia passado da hora.
Caminhava como se
ninguém pudesse pará-lo, passos largos e rápidos, seus músculos uivavam de
tensão. Mais suspeito impossível, mais do que se estivesse correndo. Os punhos
cerrados deixando transparecer que o ódio já começava a lançar na sua mente os
sentimentos de mágoa e de rancor, que, por sua vez, começavam a se confundir
com o arrependimento. Isso não era bom.
Não se faz nada que o
arrependimento já tenha condenado a não acontecer. Por isso a pressa.
Chegou à porta com a
pistola já na mão, entrou e foi cego ao quarto. No instante em que mudou de
ambiente, ainda mais para este ambiente, lembrou das primeiras palavras dela.
“Eu tenho o direito de interpretar e imaginar suas reações como eu bem entender,
então agora é a sua vez, ou vamos brincar de outro jogo”.
Baita atriz, lógico que
a reação de qualquer um seria beijá-la. A performance foi ótima.
Ela não estava na cama. Na cozinha, o prato vazio.
Ela não estava na cama. Na cozinha, o prato vazio.
Por um instante,
aliviou-se. Inconscientemente sua mente já começara a trair sua vontade. Só
restava, após o banheiro, que estava exatamente como ele havia deixado, a área
de serviço. Ela tinha uma corda lá, as vigas do telhado sem forro, o nó estava perfeito.
Abaixo a carta
explicava tudo, e não mencionava seu nome. Entendera tudo errado, como era
idiota. Percebeu que ela foi sincera, sempre, e agora não havia mais o que
fazer, ela o libertara, Talvez isso fosse o que alguns insistem em chamar de
amor.
Precisava ir, antes
contemplou-a pela última vez. A pistola ainda estava na sua mão.
Rodrigo Fortes