segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Justo


Sou uma pessoa justa. Sou muito correto. Leio muito, muitos livros, revistas, jornais e às vezes até na internet leio. Meus companheiros de profissão dizem que não deveria ler tanto, mas leio. Eles não passam de um bando de ignorantes. Meus amigos, gente boa, já salvaram minha vida, mas muito ignorantes, não chegam perto do conhecimento que eu tenho. Sou tão correto que nem ao menos lembro a última vez que matei uma pessoa, isso deve fazer muitos anos mesmo. Os colegas dizem que brinco com a sorte sendo assim, são ignorantes e imorais. Na nossa última operação salvei um homem da morte, o Bola queria matá-lo, mas eu disse “ Não Bola, esse cara deve ter família, um lar pra sustentar, ele não vai abrir a boca, não é mesmo rapaz?” e o homem fez que sim com a cabeça meio que chorando e com as calças molhadas do apertão que o Bola fazia nele. É um sem noção mesmo, salvei o homem, foi embora. Quando saímos para ir pro depósito tive que matar uma criança, nove anos parecia, estava ali vendo tudo e começou a chorar, atirei no meio da pequena testa. Fiz o que tinha que ser feito, crianças não sabem ficar quietas. Alguma leitora não acostumada a leituras (pra não dizer ignorante) deve estar estranhando, disse que não lembrava a última vez que matei uma pessoa e digo que na última operação matei uma criança. Entendo as pessoas com deficiência de cultura, mas na minha grandiosidade explico aqui a esses pobres. Como já li muito, em mais de um livro percebi que uma criança ainda não é um homem, uma pessoa. Aquela criança não sustentava ninguém, só dava gasto para alguma família. Com isso, não agi de modo incorreto, imoral ao matá-la, talvez seus pais até me agradeceriam se eu deixasse saber o que eu fiz, mas infelizmente a sociedade atual ainda não percebe essa verdade. Então tenho que me manter no anonimato.
            Algumas leitoras já devem ter percebido minha profissão, também no anonimato para a maioria, sou assaltante de bancos. Vejam bem de bancos. É importante frisar isso para não acharem que sou uma pessoa ruim, sem moral e ética alguma. Não tiro nada de pessoas nas ruas, que batalharam para ter o que têm. Alguns do grupo ainda fazem isso, mas sempre que fico sabendo repreendo esses idiotas. Como sou evidentemente o mais inteligente de todos, sou o líder, os mais novos do grupo e do bairro me tem como modelo. Nós vamos uma vez por mês a Rivera comprar bebidas, alfajores e explosivos. É tudo que precisamos para o trabalho, no retorno a nossa cidade, que aqui chamarei de Sapucaia, já entramos de preferência em alguma cidade pequena, com menos de vinte mil habitantes e explodimos algum caixa eletrônico de banco. Assim temos dinheiro para um bom tempo.
            Não sou de gastar muito, tenho uma vida simples. Semana passada comprei uma TV de 49 polegadas tela plana para assistir meus filmes favoritos, faroeste e máfia. Quando era mais novo e mais ignorante ficava horas com meus companheiros olhando a mesma cena de um filme para tentar fazer igual no assalto real. É claro que não acabou bem, coitado do Pé, foi baleado nas pernas numa dessas, por ele mesmo. Teve que se aposentar, hoje ele cuida das finanças do negócio, como ele precisa de cadeira de rodas, e não tem uma, temos certeza que ele não fugirá com a grana, por isso deixamos que ele cuide de todo o dinheiro e distribua igualmente a todos.
            Todo mundo da cidade nos conhece, e sabe o que fazemos para sobreviver. Todos, desde o gari até o prefeito, passando por policiais e advogados. Mas esses advogados principalmente não falam nada, tenho orgulho de dizer que já matei cinco, só não matei mais por que não me chamaram mais para o serviço, esses ladrões, pilantras, imorais e aproveitadores. Estudam cinco anos numa universidade para saber a melhor maneira de aproveitar da classe média da sociedade para sobreviver, sanguessugas imbecis traíras. Na ultima eleição conseguimos colocar o Parafuso, também conhecido como Marcos Silva, para vereador. Ele conta cada coisa nas nossas reuniões, esses políticos têm cada idéia, uma mais abominável que a outra, quanto mais estudo tem o político, mais quer roubar. Desde que o Parafuso assumiu o cargo, três suplentes tiveram que assumir a bancada dos vereados titulares.
            Além dessa vida profissional ativa, também tenho uma vida pessoal muito realizada. Sou casado com a mulher mais linda do bairro. Na adolescência todos sonhavam com a Julinha, mas ela só dava pros caras ricos do centro, com carro, que a levavam a lugares bacanas. Mas depois que me tornei o que sou, um cara culto, inteligente, trabalhador honesto, ou seja, muito foda, ela se deixou levar por meus encantos e hoje é toda minha. Faz todas minhas vontades. Quando tenho algum trabalho no domingo e consigo voltar apenas para ver o jogo, eu digo a ela, “Mulher, vou voltar só na hora do jogo, me faz umas pipocas e um mate e fica sentada no lado direito do sofá por que gosto de olhar o jogo dali e quero o lugar quentinho.” Faz muito frio nessa parte do ano, ela faz o que deve fazer.
            Escrevo isso hoje para mostrar como levar uma vista honesta, sempre buscando mais conhecimento e fazer o bem não garante uma vida boa. Ontem voltei mais cedo do trabalho, por que nos avisaram da chegada de uns policiais novos para a cidade vizinha e estavam de vigia no local onde iríamos assaltar. Quando cheguei a casa, domingo duas e pouco da tarde, peguei minha mulher com o Pé fazendo isso mesmo que você está pensando, cara leitora pervertida, no meu sofá. Foi estranho e nojento. Eles olharam espantados para mim, principalmente o Pé. Passei por eles com cara de sério e falei, “vou esperar lendo ali no quarto, Pé tu estás demito, e tu mulher, limpa essa bosta depois e me faz uma pipoca, um chimarrão e esquenta meu lugar pra eu ver o jogo”.

G.G.

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